quinta-feira, 31 de maio de 2012


Tu falas de corpos. A contá-los como se fossem ovelhinhas. Corpos para serem usados. Deitados fora. 

Tu não falas de mulheres, tu falas de corpos. Tu dizes gosto mesmo de gajas. Mas duvido que as conheças. Tu conheces corpos. Conhece-lhes o rabo e as mamas.  

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Menina dos pés descalços


Andava com os pés cheios de feridas. Ainda ensanguentados de todos os detritos que pisou no caminho com os pés virgens, não habituados a caminhos adversos. Sofrida e lenta, a caminhada chegava a um ponto em que a dor se transformara em dormência. Os vidros e as pedras que pressionavam a carne já vermelha, nos sítios em que a pele se tinha rompido, já eram parte de si, a dor era parte de si. Já saiu à rua descalça, saltou de sua casa para os braços de um homem. O homem da sua vida, pensara. Mas o colo gastou-se infelizmente. Os seus pés de menina tocaram o chão com uma queda, os braços que a amparavam e a levantavam do mundo saíram debaixo do seu corpo e deixaram-na sujeita à força da gravidade. Caiu. Na altura não pensou ser preciso precaução, aqueles braços estariam sempre ali, fieis, nunca se cansariam, nunca se ocupariam com outros saltos. Enganou-se. Caiu. Da queda até ao momento em que se levantou não sabia muito bem o que se tinha passado, pensava ter sido uma distração e ficou sentada, sem força para se levantar, sem vontade de se levantar, à espera dos velhos braços cansados. Quando deu por si os seus braços já eram de outra, e pela primeira vez na sua vida teve de usar os seus, teve de usar as pernas e teve de usar a força que não sabia ter. Levantou-se. Devagar, com a força dos seus braços e pernas fracas, levantou-se. E caminhou, com os seus pés virgens, até casa… Onde aprendeu a sarar as feridas que lhe ficaram para sempre e aprendeu a viver com as cicatrizes de uma das maiores quedas da sua vida. Mal sabia ela que tinha sido só a primeira de muitas, mal sabia ela que as cicatrizes que tinha ganhado, iriam ser um dia a sua salvação.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

No fim


No fim. No último dia. Quando sabemos que é o ultimo. Sentimos todas as cores, vemos todos os cheiros. As ruas velhas parecem novas, já não são ruas, deixam de ser ruas para se transformarem em saudades. Todo o desgosto transformado em saudades. As lágrimas guardadas dentro dos olhos. Parece que as lições foram guardadas para o fim. Como se no fim fizessem sentido, como se ficássemos espertos no fim. É estranho como podemos sentir saudades de um sítio mesmo antes de ir embora. No momento em que nos sentimos em casa. Ando pelas ruas que choram à minha passagem. E olho as pessoas como se sentisse saudade delas, como se sentisse saudades das pessoas que nunca vi na vida, mas que só por estarem ali, no sítio que passei quando me vim embora pela última vez, me lembram de todas as que passaram por mim. No fim. No último dia. A nostalgia ganha todo outro sentido, a tristeza, a mágoa, a alegria, a felicidade, tudo é nostalgia e saudades que vemos com um sorriso. Até um dia.

quarta-feira, 16 de maio de 2012


A vida deu-me a comer a tristeza. Colher a colher encheu-me a boca, encheu-me o estomago de fraqueza, ensinou-me o que era carpir. Ela fugiu. Matou-me a alegria, tirou-me tudo o que tinha, meteu-me a mão no bolso da camisa e enfiou uma faca suja e fria. Tento manter a cabeça erguida, ainda que com olhos ensanguentados. Tento com a alma vazia, manter os sorrisos fabricados. Estes definitivamente não são os meus dias, tudo me manda para baixo, mas desde que tu me sorrias, tenho os meus sonhos bem guardados. Não tenho sangue, ao que dizem, sou pouco abrutalhado, mas isso é de quem não cabia, não conhece ou conhecia o meu guerreiro mal-amado. 

terça-feira, 15 de maio de 2012


Em dias em que o cansaço é como o calor, como o calor em que o sol não queima mas coze por dentro, a única chuva que cai é tristeza. Cai e ensopa-me. Ensopado em tristeza e desamor. Encharcado de olhos cansados e costas destruídas. E os tais lábios que se teimam em queimar com beijos apaixonados. A tristeza que me esmorece, enfraquece, e nem sequer se transforma em arte… Muitas vezes penso que mereço, que é para aprender a não ser parvo, outras tantas quero morrer.

domingo, 13 de maio de 2012

As nossas raízes


As nossas raízes. Que muitas vezes não vemos por estarem por baixo da terra. O que nos suporta, nos alimenta o sangue, nos dá de mão beijada à personalidade, o néctar. Renegar as raízes é renegar o pão que nos alimentou. Se não tivermos orgulho em quem fomos nunca poderemos ter em quem somos. Dai a nostalgia que te corre no sangue, ó Portugal. É demasiado o fado que não é em demasia, não é exagerado. Assenta-nos bem. É por isso que estás de olhos postos no oceano, a contemplar o passado. Sempre deste as costas ao resto. As guitarras sempre serão a tua voz e o teu olhar sempre o mar. De onde viste as velas chegarem com a pátria e a saudade às costas. Temos em nós demasiado valor, que se perde a cada dia, que se desvanece com o amor, com o verdadeiro amor. Que se desvanece com o som de metais cortantes, dos gritos de vitória, com o choro da saudade, com a esperança perdida em infinitos nevoeiros. Promessas falhadas. Ó Portugal, tu que já foste dono de meio mundo, e agora nem teu dono és, tu que carregas em ti tradições ultrapassadas e atiras ao lixo os valores de uma vida, não deites o teu nome ao vento, não o atires ao mar, leva-o contigo, até ao sitio onde queres chegar. 

sábado, 12 de maio de 2012

noite


Respirava fundo como quisesse aspirar o mundo. Como se quisesse alimentar o coração, e era essa a necessidade que sentia. Como se tudo lhe fizesse falta, inspirava o ar impuro, sujo por fumos e coisas que o ar poluído tem, até este lhe bater no fundo dos pulmões. Não era desespero, era a ansiedade que muitas vezes sentia e não sabia bem de onde vinha. Convivia com ela como se convive com uma doença crónica. O hábito encarregava-se do resto. O vazio que tentava ocupar com as correntes de ar que levava ao fundo dos pulmões,era provavelmente falta de amor. E o amor era uma palavra que já não lhe fazia grande sentido. Ninguém fica indiferente à palavra amor. Quando alguém a ouve, tem tendência a virar a cabeça, como se fosse uma palavra rara. Ninguém ouve amor e fica indiferente. Ele ficava. Já ouve tempos, em que não se debruçava no parapeito da janela às cinco da manhã, a fumar, por não conseguir dormir. Nessa altura, em que a sua ansiedade tinha esperança, o seu coração não tinha costuras, novo, imprudente e ingénuo, ainda ouvia a palavra amor, ainda lhe dizia alguma coisa. Hoje debruçava-se sobre o parapeito da janela às cinco da manha, a fumar, por não conseguir dormir, e olhava as luzes que ocupavam a cidade, pensava na sua família que desaparecera. Pensava na sua família morta. No seu pai, na sua mãe e no seu irmão mortos, e pensava na vida deles como se nunca tivesse existido, como um adulto pensa no tempo passado na pré-escolar, meio nublado, como se pudesse ter sido um sonho. O amor nunca lhe bateu à porta, ele já tinha batido à porta do amor, mas o amor nem perguntou quem era, ficou-se pelo silêncio, não respondeu. Hoje em dia, se lhe viesse responder às cartas que lhe tinha deixado por baixo da porta, não reconheceria o remetente, correio direito para o lixo. Acabou o cigarro e respirou fundo, como se quisesse aspirar o mundo. Mal sabia ele que aquele vazio era eterno, era o amor que desaprendeu, que desprendeu, que se largou de si, que lhe saiu do corpo, que morreu, que desnasceu. Condenado a ser amargo até ao fim.

terça-feira, 8 de maio de 2012

O antigo - http://ferrosembrasa.tumblr.com/

Uma página

Sentado no mesmo banco de pedra de sempre. No mesmo banco que se tinha sentado desde Setembro desse ano, quando a escola começou. Desde o primeiro dia de aulas de sempre, em que conheceu os seus colegas e a professora Joana. Era naquele banco de pedra, já com fungos, onde já se tinham sentado centenas de rapazes de seis anos, àquela hora, que todos os dias esperava pela sua mãe. Naquele dia, à mesma hora, ele estava lá sentado. Mas pouco a pouco a hora deixou de ser a mesma. Naquele dia, a hora tornou-se outra, o tempo passava e passava, com o seu olhar parado, estático, sobre o seu novo relógio de pulso.
 Tinha-o recebido pelos anos. Foi aquele relógio que lhe ensinou as horas e o tempo. Tinha uma bracelete castanha, e era branco o fundo que suportava os números pretos. Quando o recebeu, o pai disse-lhe, é um relógio à homem. Ficou de peito cheio, o orgulho a sair-lhe pelos olhos, até já nem tinha ideia de fazer birras ou brincar com os carrinhos que tanto gostava. A partir dali era um homem, pensou.
O relógio que lhe ensinou a ver as horas dizia-lhe que já passavam 25 minutos da hora. Cansado de esperar os 25 minutos que lhe tinham parecido duas horas, levantou-se. Levantou a mochila pesada que suportava todos os seus livros e cadernos e passou cada braço por dentro de cada alça. De mochila às costas, a 10 metros do portão de saída que lhe dava acesso ao exterior da escola, caminhou pé ante pé, com cada uma das suas mãos em cada alça, para ajudar a suportar o peso. Caminhava lentamente e a sua cabeça andava à volta, parava em cada camisa branca que via, pensando poder ser a sua mãe. O ruído das pessoas e dos carros emudeceu, os seus passos mais baixos que o silencio. A sua concentração no olhar, e nos cabelos castanhos combinados com camisa branca.
Saiu pelo portão da escola, perdido, de olhar desnorteado, com a cabeça à roda e rodeada de sons anafados, graves, enfadados. Os passos passaram de sussurrados a gritados. Mais rápido do que pensou conseguir andar com o peso dos livros e do medo. Com o som dos carros a rugir aos seus ouvidos bloqueados, cada 10 esquinas de dúvida, cada esquerda e direita de dúvida e o medo. Perdido dentro de si próprio, os pensamentos voavam e chocavam de frente dentro da sua cabeça, um verdadeiro brainstorming, literalmente, com direito a raios e trovões. Com direito ao medo da rejeição, da perda, perdido. Finalmente, avistou a sua casa, abriu o portão do quintal, entrou a correr e encontrou a porta de entrada, que dava acesso directo ao hall de entrada, aberta. Gritou mãe, não parou, correu para a sala a gritar mãe, correu para a cozinha a gritar mãe, correu para os quartos a gritar mãe, correu para a garagem a gritar mãe, gritou mãe. Parou e gritou mãe, caiu no chão, ainda com a mochila às costas. Caiu no chão. E calou-se. O silêncio apareceu por baixo das últimas repetições da palavra mãe a virem das paredes, pesado. Silencio tão pesado como o da solidão. Voltou o barulho com as solas dos seus sapatos a baterem no chão, quando se levantou. Caminhou em direcção ao seu quarto, devagar, com os olhos no chão. Com mil e uma coisas para dizer à sua mãe esquecida, com outras mil para exaltar a desaparecida. Com o coração no chão.


Mãe, por vezes, ainda hoje, quando chego a casa e tu não estás, quando chego a casa e reparo no teu lugar vazio, quando reparo no espaço vazio nove vezes maior que o teu corpo, sinto-me como o rapaz. Vazio de qualquer coisa. A pensar nessa tua ausência Mãe. E pensar nessa tua ausência, nessa falta que pode ser permanente, faz-me cair tudo ao chão e perder as forças. Como se a tua força fosse parte da minha.


João! João! JOÃO!
O seu nome na boca de passos apressados, roupa a roçar em paredes e portas. Levantou a cabeça, abriu os olhos, virou-se, a sua mãe. À sua frente a mãe a caminhar em sua direção, com braços abertos e cara em transformação de assustada para aliviada e irritada, disse:
Nunca mais te vás embora, mesmo que eu não esteja, mesmo que eu não apareça, eu mandarei alguém para te buscar, para te apanhar, para cuidar de ti. Eu estarei sempre contigo, mesmo que não esteja, eu estarei sempre contigo.   

sexta-feira, 4 de maio de 2012

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.



José Luis Peixoto

quinta-feira, 3 de maio de 2012


Rodeia-te de vida e rodear-te-ás de morte.