terça-feira, 8 de maio de 2012

Uma página

Sentado no mesmo banco de pedra de sempre. No mesmo banco que se tinha sentado desde Setembro desse ano, quando a escola começou. Desde o primeiro dia de aulas de sempre, em que conheceu os seus colegas e a professora Joana. Era naquele banco de pedra, já com fungos, onde já se tinham sentado centenas de rapazes de seis anos, àquela hora, que todos os dias esperava pela sua mãe. Naquele dia, à mesma hora, ele estava lá sentado. Mas pouco a pouco a hora deixou de ser a mesma. Naquele dia, a hora tornou-se outra, o tempo passava e passava, com o seu olhar parado, estático, sobre o seu novo relógio de pulso.
 Tinha-o recebido pelos anos. Foi aquele relógio que lhe ensinou as horas e o tempo. Tinha uma bracelete castanha, e era branco o fundo que suportava os números pretos. Quando o recebeu, o pai disse-lhe, é um relógio à homem. Ficou de peito cheio, o orgulho a sair-lhe pelos olhos, até já nem tinha ideia de fazer birras ou brincar com os carrinhos que tanto gostava. A partir dali era um homem, pensou.
O relógio que lhe ensinou a ver as horas dizia-lhe que já passavam 25 minutos da hora. Cansado de esperar os 25 minutos que lhe tinham parecido duas horas, levantou-se. Levantou a mochila pesada que suportava todos os seus livros e cadernos e passou cada braço por dentro de cada alça. De mochila às costas, a 10 metros do portão de saída que lhe dava acesso ao exterior da escola, caminhou pé ante pé, com cada uma das suas mãos em cada alça, para ajudar a suportar o peso. Caminhava lentamente e a sua cabeça andava à volta, parava em cada camisa branca que via, pensando poder ser a sua mãe. O ruído das pessoas e dos carros emudeceu, os seus passos mais baixos que o silencio. A sua concentração no olhar, e nos cabelos castanhos combinados com camisa branca.
Saiu pelo portão da escola, perdido, de olhar desnorteado, com a cabeça à roda e rodeada de sons anafados, graves, enfadados. Os passos passaram de sussurrados a gritados. Mais rápido do que pensou conseguir andar com o peso dos livros e do medo. Com o som dos carros a rugir aos seus ouvidos bloqueados, cada 10 esquinas de dúvida, cada esquerda e direita de dúvida e o medo. Perdido dentro de si próprio, os pensamentos voavam e chocavam de frente dentro da sua cabeça, um verdadeiro brainstorming, literalmente, com direito a raios e trovões. Com direito ao medo da rejeição, da perda, perdido. Finalmente, avistou a sua casa, abriu o portão do quintal, entrou a correr e encontrou a porta de entrada, que dava acesso directo ao hall de entrada, aberta. Gritou mãe, não parou, correu para a sala a gritar mãe, correu para a cozinha a gritar mãe, correu para os quartos a gritar mãe, correu para a garagem a gritar mãe, gritou mãe. Parou e gritou mãe, caiu no chão, ainda com a mochila às costas. Caiu no chão. E calou-se. O silêncio apareceu por baixo das últimas repetições da palavra mãe a virem das paredes, pesado. Silencio tão pesado como o da solidão. Voltou o barulho com as solas dos seus sapatos a baterem no chão, quando se levantou. Caminhou em direcção ao seu quarto, devagar, com os olhos no chão. Com mil e uma coisas para dizer à sua mãe esquecida, com outras mil para exaltar a desaparecida. Com o coração no chão.


Mãe, por vezes, ainda hoje, quando chego a casa e tu não estás, quando chego a casa e reparo no teu lugar vazio, quando reparo no espaço vazio nove vezes maior que o teu corpo, sinto-me como o rapaz. Vazio de qualquer coisa. A pensar nessa tua ausência Mãe. E pensar nessa tua ausência, nessa falta que pode ser permanente, faz-me cair tudo ao chão e perder as forças. Como se a tua força fosse parte da minha.


João! João! JOÃO!
O seu nome na boca de passos apressados, roupa a roçar em paredes e portas. Levantou a cabeça, abriu os olhos, virou-se, a sua mãe. À sua frente a mãe a caminhar em sua direção, com braços abertos e cara em transformação de assustada para aliviada e irritada, disse:
Nunca mais te vás embora, mesmo que eu não esteja, mesmo que eu não apareça, eu mandarei alguém para te buscar, para te apanhar, para cuidar de ti. Eu estarei sempre contigo, mesmo que não esteja, eu estarei sempre contigo.   

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