Tinha-o recebido
pelos anos. Foi aquele relógio que lhe ensinou as horas e o tempo. Tinha uma
bracelete castanha, e era branco o fundo que suportava os números pretos.
Quando o recebeu, o pai disse-lhe, é um relógio à homem. Ficou de peito cheio,
o orgulho a sair-lhe pelos olhos, até já nem tinha ideia de fazer birras ou
brincar com os carrinhos que tanto gostava. A partir dali era um homem, pensou.
O relógio que lhe ensinou a ver as horas dizia-lhe que já
passavam 25 minutos da hora. Cansado de esperar os 25 minutos que lhe tinham
parecido duas horas, levantou-se. Levantou a mochila pesada que suportava todos
os seus livros e cadernos e passou cada braço por dentro de cada alça. De
mochila às costas, a 10 metros do portão de saída que lhe dava acesso ao
exterior da escola, caminhou pé ante pé, com cada uma das suas mãos em cada
alça, para ajudar a suportar o peso. Caminhava lentamente e a sua cabeça andava
à volta, parava em cada camisa branca que via, pensando poder ser a sua mãe. O
ruído das pessoas e dos carros emudeceu, os seus passos mais baixos que o
silencio. A sua concentração no olhar, e nos cabelos castanhos combinados com
camisa branca.
Saiu pelo portão da escola, perdido, de olhar desnorteado,
com a cabeça à roda e rodeada de sons anafados, graves, enfadados. Os passos
passaram de sussurrados a gritados. Mais rápido do que pensou conseguir andar
com o peso dos livros e do medo. Com o som dos carros a rugir aos seus ouvidos
bloqueados, cada 10 esquinas de dúvida, cada esquerda e direita de dúvida e o
medo. Perdido dentro de si próprio, os pensamentos voavam e chocavam de frente
dentro da sua cabeça, um verdadeiro brainstorming, literalmente, com direito a
raios e trovões. Com direito ao medo da rejeição, da perda, perdido.
Finalmente, avistou a sua casa, abriu o portão do quintal, entrou a correr e
encontrou a porta de entrada, que dava acesso directo ao hall de entrada,
aberta. Gritou mãe, não parou, correu para a sala a gritar mãe, correu para a
cozinha a gritar mãe, correu para os quartos a gritar mãe, correu para a
garagem a gritar mãe, gritou mãe. Parou e gritou mãe, caiu no chão, ainda com a
mochila às costas. Caiu no chão. E calou-se. O silêncio apareceu por baixo das últimas
repetições da palavra mãe a virem das paredes, pesado. Silencio tão pesado como
o da solidão. Voltou o barulho com as solas dos seus sapatos a baterem no chão,
quando se levantou. Caminhou em direcção ao seu quarto, devagar, com os olhos
no chão. Com mil e uma coisas para dizer à sua mãe esquecida, com outras mil
para exaltar a desaparecida. Com o coração no chão.
Mãe, por vezes, ainda hoje, quando chego a casa e tu não estás, quando chego a casa e reparo no teu lugar vazio, quando reparo no espaço vazio nove vezes maior que o teu corpo, sinto-me como o rapaz. Vazio de qualquer coisa. A pensar nessa tua ausência Mãe. E pensar nessa tua ausência, nessa falta que pode ser permanente, faz-me cair tudo ao chão e perder as forças. Como se a tua força fosse parte da minha.
João! João! JOÃO!
O seu nome na boca de passos apressados, roupa a roçar em
paredes e portas. Levantou a cabeça, abriu os olhos, virou-se, a sua mãe. À sua
frente a mãe a caminhar em sua direção, com braços abertos e cara em
transformação de assustada para aliviada e irritada, disse:
Nunca mais te vás embora, mesmo que eu não esteja, mesmo
que eu não apareça, eu mandarei alguém para te buscar, para te apanhar, para
cuidar de ti. Eu estarei sempre contigo, mesmo que não esteja, eu estarei
sempre contigo.
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