sábado, 12 de maio de 2012

noite


Respirava fundo como quisesse aspirar o mundo. Como se quisesse alimentar o coração, e era essa a necessidade que sentia. Como se tudo lhe fizesse falta, inspirava o ar impuro, sujo por fumos e coisas que o ar poluído tem, até este lhe bater no fundo dos pulmões. Não era desespero, era a ansiedade que muitas vezes sentia e não sabia bem de onde vinha. Convivia com ela como se convive com uma doença crónica. O hábito encarregava-se do resto. O vazio que tentava ocupar com as correntes de ar que levava ao fundo dos pulmões,era provavelmente falta de amor. E o amor era uma palavra que já não lhe fazia grande sentido. Ninguém fica indiferente à palavra amor. Quando alguém a ouve, tem tendência a virar a cabeça, como se fosse uma palavra rara. Ninguém ouve amor e fica indiferente. Ele ficava. Já ouve tempos, em que não se debruçava no parapeito da janela às cinco da manhã, a fumar, por não conseguir dormir. Nessa altura, em que a sua ansiedade tinha esperança, o seu coração não tinha costuras, novo, imprudente e ingénuo, ainda ouvia a palavra amor, ainda lhe dizia alguma coisa. Hoje debruçava-se sobre o parapeito da janela às cinco da manha, a fumar, por não conseguir dormir, e olhava as luzes que ocupavam a cidade, pensava na sua família que desaparecera. Pensava na sua família morta. No seu pai, na sua mãe e no seu irmão mortos, e pensava na vida deles como se nunca tivesse existido, como um adulto pensa no tempo passado na pré-escolar, meio nublado, como se pudesse ter sido um sonho. O amor nunca lhe bateu à porta, ele já tinha batido à porta do amor, mas o amor nem perguntou quem era, ficou-se pelo silêncio, não respondeu. Hoje em dia, se lhe viesse responder às cartas que lhe tinha deixado por baixo da porta, não reconheceria o remetente, correio direito para o lixo. Acabou o cigarro e respirou fundo, como se quisesse aspirar o mundo. Mal sabia ele que aquele vazio era eterno, era o amor que desaprendeu, que desprendeu, que se largou de si, que lhe saiu do corpo, que morreu, que desnasceu. Condenado a ser amargo até ao fim.

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