quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Tristan und Isolde


Agarro a tua mão com força. Não porque te quero magoar. Não porque te queira partir ossos ou deixar marcas. Não por as tuas mãos serem lindas. Não porque te amo. Mas porque não quero que te vás. Não tu como tu és. Não tu como serás amanha, ou como foste ontem. Agarro a tua mão com força. Porque não quero que te vás agora. Não quero que te vás tu e este momento. Este segundo. Este instante em que queremos a mesma coisa. Este instante em que só pensamos um no outro. Em que só pensámos um no outro. Não quero que este tu morra. Não quero que morramos os dois com o momento. E não quero este momento sem ti. Agarro a tua mão com força. Porque quero parar o tempo. Quero parar o meu tempo. Quero parar o meu corpo o meu eu, tudo o que tenho cá dentro. Todo o vento e fumo melancólico com levantar de poeiras. Porque mesmo que se ame para sempre nunca se ama sempre. Tu nunca me amarás sempre nem eu te amarei sempre. Mas amámo-nos neste momento. Ainda que nós pessoas não saibamos o que é amar num segundo, nós amámo-nos neste segundo. Mesmo que este segundo tenha sido só um segundo ou nem isso. Eu nunca te disse, mas já foste o amor da minha vida. Num instante. E poderás ser outra vez. Agarrei a tua mão com força porque te amei num instante, em que todos os meus medos e os meus pudores se acabaram e se exaltaram, sem pensar neles. Tudo o que eu sou, exaltado em radiações que embebedam por todos os sentidos. Agarro a tua mão com força mas não te amo, não a ti que tens tudo, amo a ela que naquele momento era pura e simples, amo aquela que me amou e que não sabe. Agarrei a tua mão com força para guardar o momento e pensar nele. E guardo-o aqui dentro, junto com a tua mão.

De volta em mim

Como se estivesse a beijar pela primeira vez. Cada vez. Cada única vez que te beijei. Foi como se estivesse a beijar pela primeira vez. A primeira vez que os meus lábios tocaram noutros, a primeira vez que a minha boca se abriu em sintonias harmoniosas de hormonas e sucos. A opiorfina. Porque eu queria ser o parvo que se sentava contigo a tocar músicas à luz das estrelas. E que te via dormir. Porque o amor e eu somados somos iguais ao foleiro. Abro as mãos para o céu… é assim a vida. Estou aqui todo mobilado por dentro, sofás com cobertas de veludo e tudo! Cadeiras massajadoras, com lugar para os cotovelos, e sem pescoços pendurados. Com elevações para os pés. Leitores com 5.1 e gravações do barulho da chuva, com aquecimento central. Mas com os lugares todos vazios, com visitas pontuais que não me gastam o chão, que não me gastam a pintura das paredes. E o espaço vazio cheio de pó transforma-se em recantos. Escaninhos. Onde durmo de olhos cansados e faço textos. E eu, que podia ser o parvo que se sentava contigo a tocar músicas sobre estrelas, ao luar. E te via dormir. Estou aqui, a tocar e a escrever para alimentar o coração.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Este texto não é sobre ti.

Hoje apetece-me escrever. Embora não tenha qualquer vontade. Embora não queira chegar a um produto final porque já sei sobre o que vai ser. Hoje apetece-me escrever, pensei pra mim mesmo. Hoje apetece-me escrever mas não vou escrever para ti. Este não vai ser sobre ti. Quando me partiste o coração, todos os dias, eu só imaginava o meu corpo a esmagar-se contra o rio Tejo, sangue e ossos partidos. Hoje só penso que não quero escrever sobre ti. Sobre ti já esgotei todos os pensamentos, todas as palavras, já está tudo dito. Este texto vai ser sobre alguma coisa linda, que me faça feliz nos pensamentos. Que não me faça ver as cicatrizes, os remendos na pele, as marcas dos beijos, os ossos com falta de aperto e calor. Este texto não vai ser sobre ti nem a forma como me deixaste sem me teres. Quando me partiste o coração, e eu só imaginava o meu corpo moribundo dentro do Tejo, porque até não me importava de morrer dentro de água. Este texto não vai ser sobre isso. Este texto não vai ser sobre o facto de eu preferir morrer a não te ter, de eu preferir decompor dentro de água, se não me encontrassem, a não te ter. Não vou escrever sobre preferir estar deitado numa marquesa, se me encontrarem, com cheiro putrefacto e com uma etiqueta no dedo do pé. Morto. Nem vou escrever sobre o quão linda tu serias a dançar no meu caixão, com um vestido de lantejoulas. Neste texto não vou escrever sobre ti, apesar de este texto ser mais tu do que eu alguma vez tive. Embora este texto seja mais tu do que letras.

Lições sobre especiarias

"Vejo-lhe a cara sem o conhecer. Não preciso de o conhecer. Não preciso de lhe saber o nome nem onde mora. Eu sei o que sinto. Eu sei o que me dirá o seu olhar sem o ver. Eu sei o que fala, o que pensa, o que os amigos pensam e o que tu pensas. É dos que sim quando não. Se desapareceres e ficares longe ele volta, porque era a única coisa que ele tinha. A indiferença ao teu calor à distância. O, foda-se não, o achas?, o oh isto é só para vazar. O seu olhar diz-me, sou só porque quero sou muita bom sou o melhor e eu é que não quero. O teu diz-me que sim. O teu diz-me, sou fraco. O teu diz-me, tu não. O teu diz-me, sou dele. O meu diz que ainda há muita hipocrisia, muita vergonha, muito orgulho no guardar. O dela era orgulhoso sem o ser, era mais magoado, era mais verdadeiro sem o ser, mesmo fechado a não sei quantas chaves. O teu e o dele compensam-se. Sejam melhores amigos e queridinhos e compinchas. O meu conselho é, sai. As pessoas no fundo do coração não mudam, e é no fundo que nasce o puro, o amor e a amizade são o puro da pureza. Tudo o resto é mesquinhice."

Qual é coisa, qual é ela… sem ser a Sindasrela, que me dá lições sobre especiarias, em corpos ás fatias?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Amor burguês

Reapresento-vos um génio, genial a fazer genialidades. O Grande Zé Luis.



"Havemos de engordar juntos.

Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz "cliente seguinte", estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a guardá-las nos sacos.

As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes: responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear desse momento.

É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirma a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir tarefas, há a possibilidade de se ser snob, crítico literário; quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno-almoço, quando estivermos a pôr roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, reflectidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se tivéssemos uma deficiência na fala.

Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.

As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más ou filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam as séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as televendas, também servem.

Havemos de engordar juntos.

Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro-ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para a casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.

Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.

E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.

Nós acreditávamos.

Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho."



José Luís Peixoto, in revista Visão (Janeiro, 2012)

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O primeiro é velho e sabido.

O som. Apurado ao extremo. O estalar da gravilha por baixo dos pneus. O frio. O vento que corta os dedos. Que dilacera a carne. O cheiro a laranja. O cheiro a laranja podre no chão. O peito quente. Na solidão. O não ter com quem falar. Só quem nunca esteve completamente só.  Amores magros que preenchem as rachas do medo. Do isolamento. Na solidão. Só quem nunca esteve completamente só é que se pode dar ao luxo de te tratar mal.

Às vezes gostava de chegar perto de ti e dizer-te tudo aquilo que não vou querer ter dito depois de o dizer.

Gostava de te dizer tudo o que te vai mandar pra longe no momento em que o meu corpo é transparente  e verdadeiro. Idealizada seria a ideia de adorares aquilo que eu te iria dizer se te quisesse deixar escapar da minha bola de vidro, e me abafasses as palavras.

BEM VINDOS À MINHA SALA ESCURA

Novo Endereço - Ano novo blog velho.